quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Travessia de caiaque na Represa de Furnas/MG - out/2018



Em meu tempo de primário, era extremamente difícil assimilar e cumprir sem questionar (e muito!) a lógica do currículo escolar. Naquele tempo, cumpríamos oito anos no primeiro grau para, então, entrarmos nos três últimos e decisivos anos antes de escolher o que se queria da vida. Apesar de não saber o que quero fazer da minha vida até hoje, vejo o quanto aquela sequência interminável de anos na escola me ajudou a estabelecer cronogramas lógicos e ter paciência em minhas expedições. Não há como encurtar a distância entre dois pontos. É preciso encarar e transpor o que vier pela frente. Uma montanha, uma tempestade, um pneu rasgado, árvores caídas no caminho, um caiaque virado, nada disso pode ser evitado na busca de um objetivo. É imprescindível saber lidar com os percalços. Como nos saudosos tempos de escola, há que se administrar e transpor os momentos difíceis, aproveitando cada ensinamento e experiência para se alcançar um “diploma”, ainda que isso fosse um saco para um garoto sedento por brincar ao ar livre.  
Em todas as minhas viagens, seja de caiaque, de bike ou a pé, chega um momento em que cada quilômetro se torna um tormento. Vem aquela vontade quase incontrolável de largar tudo, acabar com o sofrimento e voltar para casa.
Nessa última viagem que fiz de caiaque, ao me deparar com essa maldita vontade, lembrei-me muito de meu martírio escolar e, meditando durante as sofridas remadas, fortaleci minha vontade de concluir o trajeto que havia traçado (não há pior sensação no mundo que não concluir um projeto). 
Das dificuldades envolvidas em realizar uma viagem de caiaque, a mais evidente, por mais ridículo que pareça, é achar uma companhia. É fato que o universo de remadores que conheço já é extremamente reduzido. Ainda assim, dessas dez pessoas, já descarto a metade, por conta da intransigência matrimonial. Os cinco restantes, normalmente, vão se esquivando na medida em que a data de partida se aproxima. As desculpas são as mais surpreendentes: “Estou sem dinheiro” (o cara recebe o dobro do meu salário!), “Não consegui folga no trabalho” (é dono do próprio negócio), “Acho que a previsão de tempo não é boa” (realmente, não se trata de uma viagem da CVC turismo).
De qualquer forma, no fundo eu estava precisando ficar só. O ano havia sido difícil. Precisava esfriar a cabeça, “atualizar o software”. Ouvir o que eu tinha para dizer pra mim mesmo. E assim fui. Só e bem acompanhado!
Meu objetivo era atravessar a parte mais longa da represa de Furnas. Para tanto, abri o mapa e tracei uma rota saindo das proximidades de Alfenas/MG e chegando à barragem da represa, percorrendo 120 quilômetros no sentido sudeste – noroeste. Desta forma, precisaria de um apoio para me deixar no local de partida e me resgatar na chegada. Dagoberto Manzan (meu pai) era a pessoa indicada para esse fardo. Após incontáveis e tediosos resgates, achei que seria difícil convencê-lo novamente, mas seu espírito paterno prevaleceu e o Dagosão aceitou entrar em mais uma de minhas roubadas.      
Saímos de Brasília apreensivos com a chuva. Em Catalão o céu desabou e a torrente nos seguiu até Uberaba. Contudo, preferi ter fé na previsão meteorológica para os dias seguintes.
Para o local da partida, eu havia escolhido a ponta de um dos braços da represa de Furnas, mas ao chegar ao local, encontrei uma área pantanosa, sem condições de remada. Era o primeiro sinal de que a represa estava bem abaixo de seu nível normal.  Eu tinha previsto essa possibilidade na fase de planejamento e, por conta disso, havia outro local como “backup” para a saída. Na Ponte das Amoras, as condições não eram perfeitas, mas funcionaram para meu zarpar.
Elaborei um criterioso checklist de equipamentos necessários para minhas viagens de caiaque. Desta forma, em questão de minutos, consigo organizar todas as bugigangas e suprimentos que levarei dentro do meu barco.
A lista de tralhas parece longa, mas quando tudo está organizado dentro do caiaque, a fisionomia da embarcação se torna extremamente “clean”. Sendo muito organizado (chegando a ser chato), eu estabeleci um protocolo de organização para os equipamentos. Tudo tem seu lugar predeterminado de acordo com a necessidade e urgência de uso. Como exemplo, todo o material relacionado ao acampamento vai no fundo dos estanques. Já os equipamentos de emergência (bomba de água, remo sobressalente, anorak, lanterna de cabeça, comida e fogo) ficam sob o cockpit, de modo a serem alcançados facilmente. Bússola, mapa e GPS seguem em meu colo (sobre a saia). Por fim, o material de registro (máquinas de filmar e fotografar) ficam fixadas na parte externa do caiaque, prontas para qualquer cena. Essa lógica organizacional nada mais é que o fruto de tentativas e erros em tantas outras viagens.
Despedi-me do Dagô às 12h30min, conferi a rota no GPS e dei as primeiras remadas da viagem. Por conta do baixo nível do reservatório e de estar próximo a um dos rios que alimentam a barragem, a tonalidade da água era bem turva. O tempo estava encoberto e propício para o plano. Passando por inúmeras fazendas às margens da represa, eu observava a alteração que a inundação da represa gerou na paisagem. A energia elétrica, definitivamente, não é totalmente limpa.
Pouco a pouco eu ia ganhando quilômetros, e com isso a tonalidade da água ia se tornando esverdeada, sinal de que eu remava sobre águas profundas e mais paradas.  
Ao passar pela margem de uma das fazendas, aproximei-me de um rebanho de bovinos que se hidratavam. Interessante a reação do gado. De início fugiram, provavelmente achando que eu fosse um predador grande (talvez um crocodilo amarelo!). Após se acostumarem com minha fisionomia, retornaram lentamente à margem e me seguiram por um tempo, desta vez achando que eu fosse abastecê-los com ração ou sal, como de praxe é feito nas fazendas.
Passamos recentemente por uma crise hídrica em Brasília e, como geógrafo, sei bem as causas e consequências disso. Durante minha remada pela represa de Furnas, pude constatar que a crise hídrica se trata de uma “doença” pandêmica no território brasileiro. A ingerência somada ao crescimento demográfico e à falta de consciência no uso da água secaram nossos reservatórios. Em Furnas observei atônito uma faixa de terra exposta de aproximadamente 15 metros. Muito triste!
Com doze quilômetros remados, olhei minha posição no mapa e observei a comprida linha que ainda teria que seguir até meu destino. Naquele ponto, traçando um paralelo com meus anos escolares, eu me situaria no terceiro ano primário. Não estava claro ainda como seria possível terminar a longa e penosa “jornada”.   
Ainda que eu tivesse saído tarde, consegui imprimir um bom ritmo de remada e, ao chegar ao ponto onde havia planejado dormir minha primeira noite, resolvi esticar um pouco mais a fim de garantir alguns quilômetros que poderiam adiantar meu cronograma. No fim da tarde, acabei pegando um pouco de chuva.   
A vantagem em adiantar a programação é que se ganha crédito de tempo para imprevistos, mas fica a incerteza de achar um local viável para dormir. Não é simples encontrar um local plano e limpo nas margens das represas e rios. Quando passo da hora ou do local planejado para o pernoite e sigo sem achar uma brecha na margem, sinto a mesma sensação de quando chego tarde a uma cidade com lotação esgotada nos hotéis. É osso! A noite vai te engolindo lentamente e não há muito o que fazer. É seguir remando e procurando.   

Encostei na margem para lanchar, próximo a um barranco exposto pelo baixo nível da água. Ao desembarcar do caiaque, observei uma grande quantidade de carcarás se alimentando. Curioso por conta da quantidade dessas aves, aproximei-me para tentar entender o porquê da concentração. Andando pelo barranco, deparei-me com uma enorme quantidade de carcaças de peixes. Era espinha de peixe pra todo lado. Daí a razão para tantos carcarás. Tentei supor o motivo de tantos peixes mortos, mas fiquei apenas na indagação. Interessante que as centenas de carcaças se concentravam apenas em um raio de cem metros. Avaliei se havia uma descarga de agrotóxicos em volta, ou se alguém teria pescado e deixado as sobras de peixes ali, mas nenhuma das hipóteses era certa. Sem resolver o dilema, registrei o local em meu mapa como “Deadfish beach” (praia dos peixes mortos) e segui.
Quase anoitecendo, encontrei um local “ligeiramente” seguro para dormir. Um pouco escondido dos curiosos e não tão próximo de árvores, supus ser confiável. Afinal, eu me preocupava com a possibilidade de violência e de raios.
Após o jantar, consegui sinal de celular e passei as coordenadas do ponto onde estava para meu pai. Aproveitei para pedir a Lívia que me passasse a previsão meteorológica para o dia seguinte. Antes não tivesse pedido! Chuva e raios pela manhã!
Às 20h27min, o céu fechou e a ameaça de chuva aumentou. Raios e trovões a distância se alternavam. Há um método dito confiável para saber a distância que nos separa de uma tempestade. Ao ver o clarão do relâmpago, conta-se quantos segundos após se ouve o trovão. Divide-se o tempo por três e se tem a distância em quilômetros. Coloquei em prática essa técnica e percebi que a tempestade estava a menos de dois quilômetros de meu acampamento. Rapidamente, preparei-me para o pior. Coloquei tudo dentro da barraca, lacrei os estanques do caiaque, acocorei-me em cima do saco de dormir e do isolante térmico e comecei a rezar! Parecia que eu me preparava para um furacão, tamanha era minha apreensão. Poucos minutos depois a tempestade caía sobre a barraca. Com a água, eu não me preocupava tanto, pois confiava na competência da barraquinha. O problema eram os raios. Clarões constantes preencheram o teto da barraca por duas horas. A cada trovão, um alívio. Não me acertou desta vez...
Apesar do risco de raios que a chuva trazia, a preocupação com os “larápios” tinha passado - bandido não gosta de se molhar! 
Iniciei o segundo dia de remada com vento contra. E assim ele permaneceu durante todo o percurso. Progressão lenta, paciência testada e braços doloridos. Foi o resumo do dia. Remar contra o vento significa permanecer quicando dentro do caiaque ao sabor das marolas na proa. Fora esse desconforto, há ainda o fato de ter que lidar com constantes borrifadas de água no rosto. Além do esforço físico para cortar o vento e as marolas, a situação cobra um preço moral. É desanimador olhar para margem e não sentir a evolução da embarcação. Por fim, há ainda a inconveniência de ter que fechar a boca do cockpit para manter o interior relativamente seco. Em dias quentes, esse procedimento gera um calor infernal nas pernas.
Tinha combinado com o Dagô de nos encontrarmos na “Ponte Torta”, onde eu o atualizaria sobre o andamento da viagem e reabasteceria minhas provisões de água. Sem contar aquela coca gelada que ele levaria de presente. Foi perfeito!
Acabei passando direto pelo local onde planejara dormir. Mais à frente, já ao final do dia, fui impedido de acampar próximo a uma propriedade. Continuei remando para não arrumar problema. Fato é que as margens da represa não são propriedades particulares. É área da Marinha. Porém, assim não “pensam” os fazendeiros.
Dois quilômetros à frente, parei em outro sítio para pedir autorização para o pernoite. Aportei o caiaque na margem e, subindo a encosta, encontrei uma assustadora Jiboia de mais de um metro. Tenho uma péssima relação com cobras. Não gosto mesmo. Mas tento me acostumar com esse bicho sempre que tenho contato. Peguei um galho de um metro e meio e fui tentar dialogar com a “moçoila”. Cuidadosamente, ergui sua calda e esperei que se mexesse. Nada. Imóvel. Sabia que não estava morta, pois mexia sua língua regularmente. Minha tensão diminuiu e criei mais confiança com o réptil. Foi então que tentei levantá-la do chão a fim de levá-la para uma mata próxima, quando ela, emitindo um som alto e áspero, deu um bote em minha direção. Apesar de estar em uma distância segura, o recado foi bem dado. Que susto! Larguei o galho em um canto e, vencido pelo medo, fui buscar abrigo longe dali. Havia uma outra propriedade um quilômetro depois. Foi a salvação. O dono do rancho (meu xará!) me recebeu muito bem. Após montar minha barraca, o Seu Alexandre me convidou para comer algo em sua casa, onde ele recebia uma visita da cidade. Entre tantos “causos”, o assunto política não ficou de fora. Com uma sensatez incrível, meu xará contou detalhes de uma época difícil do Brasil, parecida com a atual, quando seu bisavô, tentando reorganizar as finanças da família, disse para o pai de Seu Alexandre, acariciando a cabeça do neto: “As coisa não tão boa fio, mas eu teim dó memo é desse aqui ó”!     

Confirmando a previsão, o terceiro dia de viagem amanheceu bonito e quente. Sem vento, o calor seria minha companhia durante dia. Conferindo o mapa, observei que eu havia remado três quartos do percurso até então, situação que me posicionaria no primeiro ano do segundo grau em um paralelo com meu currículo escolar. Havia ainda a parte mais importante, três anos de foco nos estudos a fim de decidir minha vida. Voltando à remada, os quarenta e cinco quilômetros que faltavam seriam decisivos para o sucesso de minha expedição. Passaria por um longo trecho, cheios de lanchas apinhadas de bêbados cruzando meu caminho.
Logo no início do dia, avistei algo se mexendo na água a uns cinquenta metros da proa do caiaque. Achei que fosse uma cobra, mas havia um volume muito grande para fora d’água. Descartei ser um réptil. Ao me aproximar, surpreendi-me com o que vi. Uma pata acolhia suas quatro crias na longa travessia da represa. Acompanhei por um tempo a saga da mãe pato na dura labuta de proteger seus filhotes. Era incrível como a pata estava totalmente vulnerável com seus inofensivos patinhos. Ainda assim, a mãe pato, mesmo sem entender o que era aquele grande objeto amarelo em seu rastro, não se desligava das crias de modo algum, mesmo que isso pudesse por sua vida em risco. A natureza é sábia.
Remei quinze quilômetros até o ponto onde eu havia combinado com me pai de atualizá-lo acerca de minha evolução.
Na ponta de uma península estrategicamente selecionada, eu teria uma boa recepção de sinal de celular. Tentei por meia hora falar com o Dagô. Caixa postal direto!
Havíamos planejado dormir próximo ao ponto de contato, mas, sem conseguir falar com ele, não havia como decidir nada. Alguns minutos depois, me veio a ideia de ligar para minha mulher e pedir que fizesse contato com o Dagô e o orientasse a se dirigir para o ponto final da remada. Isso aumentaria em quinze quilômetros o trecho estipulado para o dia, mas, diante da falta de contato, seria melhor sofrer um pouco mais e esticar a remada que ficar esperando indefinidamente uma conexão com meu resgate.
Seguindo adiante, entrei no trecho mais perigoso da remada. As margens da represa iam se afunilando à medida que eu me aproximava dos cânions. Isso significaria transitar com meu caiaque em meio a inúmeras lanchas “cegas” num espaço relativamente reduzido. Por outro lado, a paisagem ia se transformando e se tornando incrivelmente deslumbrante. Paredes de pedras de quase cem metros de altura surgiam da linha d’água.
Até esse ponto, eu vinha remando por margens relativamente planas, com discretos morros no horizonte. Adentrar no primeiro cânion foi uma mudança de paradigma. Se até então eu podia sentir a água a cada remada, nos cânions eu passei a sentir também o relevo da região. As paredes do cânion podiam ser tocadas ao deslizar meu caiaque. O cenário mudara completamente. O céu ficara restrito a uma pequena faixa entre as paredes, reduzindo, inclusive, a luminosidade em meu trajeto.
Observar as paredes do cânion foi como ter uma aula de geologia em campo. Totalmente didático tocar e entender os contorcionismos das camadas sedimentares. Um espetáculo natural. Uma lição de humildade. Imaginar há quantos anos aquelas formações estão ali; conjecturar a violência dos movimentos e adaptações geológicos necessários para constituir aquela paisagem. Realmente incrível!
Eu seguia impressionado com a grandeza e beleza do local quando me deparei com uma cachoeira no final do cânion. Quase cem metros de queda. Por conta da inundação da represa, foi possível tocar a queda d’água de dentro do cockpit. Lugares assim mostram a versatilidade de uma embarcação como o caiaque. Das três cachoeiras que visitei a bordo do meu barco, nenhuma delas se acessa com lancha.
Seguindo minha rota, havia ainda um último cânion a ser visitado antes de finalizar a viagem. Entrando pelo corredor de parede de pedras, eu não imaginava o que estava por vir. Achei que nada mais me impressionaria. Com as bordas do cânion se fechando cada vez mais e árvores mortas roçando o fundo do meu caiaque, sabia que o final do trecho navegável estava próximo. Fiz uma última curva e o caiaque encalhou. Não havia mais como remar. Saí do caiaque e andei pelo riacho de águas transparentes. Dez metros à frente, entrei em um anfiteatro de pedras com um pequeno poço no meio, onde desaguava uma discreta cachoeira entre as pedras. Fiquei abismado com a beleza do lugar. Uma paisagem de calendário! E eu, sozinho, bem ali, no meio do cânion, em Minas Gerais. Surreal!
Meia hora depois, em êxtase, eu tomava consciência de que ainda tinha alguns quilômetros para concluir a remada. “Acordei” do devaneio que aquele lugar havia me levado e toquei em direção ao Clube Náutico, onde esperava encontrar meu pai.
Com o sol se pondo, eu avistava de longe o ponto onde finalizaria a viagem. Ainda que eu não tivesse, de fato, concluído a remada, eu já desfrutava a deliciosa sensação de conquista. Mais uma!
Já “desencanado” dos detalhes e problemas que minha viagem outrora cobrara, pude, enfim, me dedicar à introspecção. Aquela água calma, lindamente dourada pelos últimos raios de sol, o cíclico som das remadas e o corpo tomado pela endorfina, levaram-me a um divã imaginário. Sem perceber, saí da remada e divaguei por alguns entalhes da minha vida. Preciosos minutos avaliando meus passos, decisões e frustações. Uma verdadeira higiene mental. Pouco tempo depois, “de volta ao meu caiaque”, encontrei com o Dagô no Clube Náutico.
A conclusão da viagem, voltando ao paralelo com meu currículo escolar, foi como receber o diploma de segundo grau. Terminara uma longa e penosa jornada após momentos de impaciência e descrença. Um pouco mais “maduro”, eu podia certamente enxergar novos horizontes a serem conquistados. Da mesma forma como vislumbrara ao deixar o colégio Objetivo, há vinte e sete anos!

1º dia – 26/10
Saída: 12h30min
Dist: 37,8 km
Tempo: 4h42’
Média: 8 km/h

2º dia – 27/10
Saída: 08h35min
Dist: 36,9 km
Tempo: 05h35’
Média: 6,6 km/h

3º dia – 28/10
Saída: 09h30min
Dist: 47 km
Tempo: 06h25’
Média: 7,4 km/h

sábado, 17 de novembro de 2018

Travessia Cavalcante - São Jorge Out/2018


No fim de sua vida, Jean-Jacques Russeau, filósofo suíço, utilizou a contemplação e o isolamento de caminhadas pelos arredores de Paris e pelo entorno de um lago suíço como ferramenta de reflexão sobre suas percepções, decepções e críticas sobre a sociedade em que vivia. No livro “Rêveries du Promeneur Solitaire” (Devaneios do Caminhante Solitário), em meio a tristes confissões e argumentos convincentes e pessimistas no que se refere ao convívio social e a valores morais, Russeau exalta a importância e a introspecção que o contato com a natureza proporciona.

“Ces heures de solitude et de méditation sont les seules de la journée où je sois pleinement moi et à moi sans diversion, sans obstacle, et où je puisse véritablement dire être ce que la nature a voulu”.
J.J. Rousseau - Deuxième Promenade

Dispostos a utilizar a ferramenta sugerida por Russeau a fim de refletir sobre a vida e questionamentos pessoais, eu, João Paulo Barbosa e Arthur Monteiro nos embrenhamos no cerrado próximo ao entorno de Cavalcante/GO, em meados de outubro.
O intuito, além da introspecção pessoal de cada um, era realizar a travessia completa do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, saindo de Cavalcante e chegando a São Jorge.
Para tanto, eu havia planejado uma rota pela borda da Serra de Santana, com o Vão do Rio Claro a nossa direita, totalizando 60 quilômetros. Com o início do período chuvoso, havia a previsão de chuvas e trovoadas esparsas. Sabíamos que a chuva poderia nos acompanhar pelo trajeto. Penso que existem particularidades interessantíssimas quando a chuva domina a paisagem. Há uma grande resistência das pessoas em geral em se aventurar debaixo d’água. Além de perderem detalhes curiosos da fauna e da flora nessa estação, os “de açúcar” deixam de aprender a conviver com a chuva, experiência fundamental para quem gosta do campo.
Seguimos por trilha até a Ponte de Pedra, onde adentramos no cerrado, negociando constantemente com o mato e as pedras do trajeto.
Havia um considerável ganho de altitude até São Jorge, visto que Cavalcante se situa quase 600 metros abaixo do ponto mais alto da rota. Essa diferença de altitude foi “conquistada” logo no primeiro dia de expedição. Como havíamos saído tarde, terminamos o dia “escalaminhando” a maior ascensão que teríamos durante a travessia. No fim do dia, chegamos a um ponto da serra em que uma bolha no pé do João, o lusco-fusco e a conveniência do local nos determinaram o assentamento de nosso acampamento. Até ali, tínhamos caminhado treze quilômetros.
Sem termos nos molhado durante o dia, restava-nos torcer para termos uma noite tranquila. A noite chegou com uma discreta aparição da lua. Enquanto jantávamos, uma verdadeira orquestra de sons naturais tomou o local. Insetos, pássaros, mamíferos e o chacoalhar das árvores entonavam o concerto. Vagalumes e o reflexo dos olhos de animais entocados iluminavam o palco. É interessante observar tudo isso sem nenhuma interferência urbana. Os sons se amplificam, as percepções se aguçam, o receio aumenta. É tocante. É transformador. De dentro de minha barraca, observava, com o corpo cansado e os olhos pesados, a claridade que a lua criava na cobertura translúcida de meu casulo. Sem perceber, adormeci. Despertei-me no meio da madrugada por conta do barulho que fazia. Ao abrir os olhos, não enxergava nada. Tudo preto. Uma sensação horrível. Já entrando em desespero, apalpei o piso da barraca para achar a lanterna. Abria e fechava os olhos incessantemente conjecturando que pudesse ser a vista se acostumando com a escuridão. Um minuto de pânico e comecei a enxergar a silhueta de alguns equipamentos dentro da barraca. Abri o zíper e percebi que o céu estava totalmente encoberto. Não havia mais a claridade da lua. Uma tempestade era iminente. Corri para fora a fim de resgatar as peças de roupa que havia pendurado em alguns galhos. Encontrei com João fazendo a mesma coisa. Diante da água que cairia, não proferimos um comentário. O entendimento da situação era único e notório. Cada um foi se acolher em sua barraca à espera da tormenta. 
O vento aumentou, o rugido se intensificou e os bichos se calaram. Respeito total à superioridade da tempestade. O uivo do vento foi substituído pelo tamborilar das gotas da chuva na lona da barraca. Não tinha o que fazer, era deitar e esperar que aquela fina membrana de nylon me protegesse da forte chuva que despencava.
Antes de amanhecer, acordei novamente após um pesadelo. Uma situação desagradável envolvendo minha mulher me tirou o sono e me deu saudade de casa. 

O dia amanheceu com várias camadas de nuvens desconexas, proporcionando um belo visual em meio à Serra de Santana. Até o ponto onde havíamos dormido a primeira noite, tínhamos cruzado dois vales lindíssimos, um deles abrigava o rio São Domingos, responsável por erodir a “Ponte de Pedra”. A transição do vão do Rio Claro com o platô da Chapado dos Veadeiros é, sem dúvida, um dos locais mais bonitos e exóticos da região. O cerrado se dispersa e se concentra de acordo com os afloramentos rochosos e as lindas veredas do local. Subimos na diagonal de uma serra contornando e admirando as diversas formações de rochas. Totens gigantescos nos vigiavam do topo da serra. É uma pena não estarmos desenvolvidos o bastante para termos uma estrutura para trekking neste setor do Parque. É lindo.
Saímos às 10h10min, após tomarmos um reforçado café da manhã. Em expedições como essa, praticamente se faz duas refeições por dia, o café da manhã e o jantar. O resto fica por conta de pequenos lanches. Daí a importância de sair bem abastecido pela manhã. Normalmente levo alimentos pré-cozidos ou instantâneos. É vital estar com a mochila leve e compacta durante a caminhada. Para esta viagem, a mulher do Arthur, Isabela, nos forneceu alguns kits minuciosamente preparados para nossa empreitada. Jantamos risoto ao fungui e tomate seco, e para o despertar tínhamos um delicioso musli, carinhosamente preparado por Isa. 
Conheci o Arthur e a Isabela através do João Paulo. O casal mora em uma pequena casa - cabana - (construída por eles!) nos arredores de Cavalcante, onde tentam levar uma vida simples, desapegada e à margem da sociedade. Estive no local em outra oportunidade, quando vi, na prateleira de Arthur, o livro “Walden”, de H. D. Thoureau. Coincidentemente, ou não, essa obra trata do isolamento do autor em uma cabana na floresta para escrever sobre a possibilidade de se levar uma vida mais simples, íntegra e autêntica. Esse livro me influenciou muito.  
Vencida a serra, andamos pela parte de cima do platô praticamente até o nosso destino. Em um dos campos abertos por quais passamos, vimos um casal de veados e, na sequência, duas cobras. Os veados nos olharam apreensivos e fugiram lentamente. Já as cobras, nem se moveram. Por sorte as vi antes de pisar, apesar de, aparentemente, não serem venenosas. 


Cruzamos alguns rios pelo trajeto. Para atravessá-los, alguém “nadava” entre os galhos e ramos até a outra margem levando a corda que usávamos para cruzar as mochilas através de uma tirolesa improvisada. Levamos aproximadamente 5h30min para caminhar vinte e dois quilômetros. Decidimos parar na borda do Rio Preto, após as “Sete Lagoas”, em um local plano e limpo. Perfeito para nosso pernoite. Com o rio ao lado, tudo se tornou mais fácil: cozinhar, tomar banho, lavar louças e contemplar!




No último dia, acordamos cedo para tentar finalizar a travessia. Saímos às 08h00min. Tínhamos pela frente 32 quilômetros, sendo que os últimos dezoito seriam pela trilha das “Sete Quedas”. O dia estava muito quente. A chuva parecia ser inevitável na parte da tarde. Desbravamos um trecho de cerrado muito fechado e com muitos blocos de pedras grandes antes de chegar no acampamento das “Sete Quedas”, no Rio Preto. A partir desse ponto, andaríamos por trilhas conhecidas até São Jorge. 

No Rio Preto, aproveitamos para nos refrescar e comer nosso último risoto. Enquanto cozinhávamos, o tempo fechou no horizonte, mas a chuva acabou desviando para o lado oposto que iríamos. A sorte está mesmo do lado de quem arrisca!    
Mais um curativo nos pés do João e seguimos para São Jorge. Vale destacar que este seria o último cuidado com os pés dele na viagem. Ao todo, gastamos um rolo de esparadrapo e mais de dois metros de “Silver tape” nos pés dele. Extremamente experiente, João pecou no romantismo de utilizar uma bota de couro (comprada no Tirol - Dolomitas/IT) sem estar devidamente amaciada para a viagem. Ele me confidenciou, após terminarmos o trekking, que lutou constantemente contra a dor e o desconforto a fim de concluir a travessia.
Seguindo a trilha das Sete Quedas, inúmeras vezes me assustei com barulhos no mato. Cobras não são animais agressivos, mas é preciso tomar cuidado quando se está no ambiente delas. Uma técnica que uso muito é andar com meu trekking pull (uma espécie de vara para auxiliar a caminhada) revolvendo o mato e as pedras antes de pisar. É como se eu avisasse para os bichos que estou passando! Não se deve confiar somente nessa técnica, mas ajuda muito.     
Caminhávamos há quase sete horas. O dia ia se finalizando e tínhamos uma última preocupação: a passagem pela portaria do Parque. Iniciamos nossa travessia por Cavalcante, onde não há portaria ou acesso. Todo o trajeto havia sido planejado por trechos sem trilhas. Por conta disso, não tínhamos dado entrada nos registros do Parque. Como explicaríamos a situação para os rigorosos guarda-parques, era uma incógnita.
Vínhamos pensando em algum discurso ou coisa parecida quando um casal entrou na portaria na nossa frente. Como já estava escuro, aproveitamos a “oportunidade” para sair pelo portão lateral, que se encontrava aberto. Ao cruzarmos o limite do Parque, um dos seguranças, saindo do banheiro, gritou:
- Ei. Opa! Tem que passar pela portaria.
Arthur, último da fila, proferiu algumas palavras desconexas e incompreensíveis e continuou andando. Diante da cena pouco provável àquela hora do dia (três sujos andarilhos apinhados de equipamentos), creio que o guarda-parque deve ter nos olhado, já desaparecendo no escuro, e pensou: “Deixa pra lá. Não vale a pena! Vai atrasar minha cerveja”...
Chegando em São Jorge, conseguimos uma carona até Alto Paraíso. A cidade estava lotada por conta de um evento musical. Sem mesmo saber onde dormiríamos, fomos comer. Após nos instalarmos, fomos ao show do Amanita Muscária, antiga banda de rock de Brasília. Durante o show, encontrei com um amigo de infância. O “Chapolin” morava na quadra vizinha a minha e ficou famoso na adolescência por fugir de moto constantemente de barreiras policiais. Diz-se por aí que até hoje há uma recompensa dentro do círculo policial para quem capturá-lo.
Entre tantas histórias de fugas espetaculares contadas por Chapolin, fiquei acanhado em contar sobre minha recente fuga do guarda-parque!
No dia seguinte, voltando para Brasília, eu e João viemos escutando um CD do Red Hot Chilli Pepper. Com o encarte na mão, cantávamos como dois adolescentes no carro, curtindo o horizonte nublado da rodovia.
Em um trecho da estrada, João, sempre com detalhes históricos e geográficos de tudo, apontou para uma depressão e disse:
- Aqui é o Estreito da Piedade.
Lembrei-me, então, de tantas outras toponímias destacadas por ele. Da Antártica à Chapada dos Veadeiros, dezenas de nomes aprendi com João: Lemaire Channel, Monte Rio branco, Mulungu, Baleia, Peito de Moça, Hovgard Island, Serra do Ferro de Amolar, Pico do Ministro, Estreito da Piedade e tantos outros.
Hoje entendo que uma boa amizade é feita de boas viagens e uma extensa lista de toponímias. 

“We’ve got to move it
If we want to do our best
We’ve got shake it
If we want to keep it fresh”
Red Hot Chili Pepper
Turn it again

*Crédito das fotos: Arthur Monteiro

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Maphead - Ken Jennings



Maphead


Mapas são representações fidedignas e curiosas da paisagem real. São elaborados em diversas escalas e temas. Eu sempre tive um enorme interesse por essas peças. Em minha infância, quando meu pai parava para abastecer o carro durante as viagens, fascinava-me descobrir a localização em que nos encontrávamos nos mapas pendurados nas paredes dos postos. Não era tarefa difícil, pois o ponto mais sujo e desbotado do mapa sempre acusava a cidade em que o tanque estava sendo abastecido. Desde cedo, convivi com mapas e livros sobre a mesa do escritório do meu pai. Havia também um enorme mapa-múndi na parede esquerda e um mapa político do Brasil no outro lado. Criei ainda mais gosto quando presenciei meu pai confeccionando mapas de cavernas. Cheguei até a participar de algumas expedições topográficas em cavernas pelo entorno de Brasília. No primeiro grau, o único livro que realmente me atraía era o de história, por conta dos diversos mapas impressos.
Dias atrás, finalizei a leitura do livro “Maphead - Charting the wide, weird world of geography wonks”, de Ken Jennings. O livro descreve as utilidades e preciosas curiosidades sobre mapas e afins. Detalhes interessantes, como, por exemplo, o fato de o Google Earth delimitar diferentes fronteiras entre os mesmos países dependendo do local de visualização (por conta de litígios geopolíticos). Outro ponto curioso é observar a semelhança entre os contornos dos estados. Compare, por exemplo, a Colúmbia Britânica com a Califórnia.  
O precoce interesse pelos mapas me rendeu frutos. Atualmente, tenho uma relação frequente e muito produtiva com eles. Organizo e detalho minhas viagens e expedições de bike, caiaque e trekking tendo como ferramentas básicas mapas e aplicativos como o Google Earth.
O uso de mapas para deslocamentos e localização é um artifício muito antigo, pois como Jennings cita no livro, desde a primeira vez que um hominídio peludo decidiu alterar sua rota de caça a fim de evitar um obstáculo ou um predador, ele desenhava um mapa em sua cabeça.


A arte de trabalhar com mapas mudou com os tempos. Para se ter uma ideia, há pouquíssimo tempo atrás, coisa de quinze anos, quando eu planejava uma expedição, eu iniciava a labuta tentando encontrar o mapa da região que desejava explorar, procedimento que mais parecia a caça ao tesouro em si! Com o mapa em mãos, era hora de escolher a trilha a se percorrer, outra tarefa dificílima, tendo em vista a desatualização dos mapas brasileiros. Então, vinha a parte mais interesante e artesanal, a identificação dos pontos de passagem (Waypoints), o que era feito coletando a interseção de dois ângulos no mapa (latitude e longitude) por meio de uma régua. Meus mapas eram todos rabiscados nas bordas por conta das inúmeras contas de conversão de centímetros em graus e vice versa. A regra de três era usada exaustivamente! Depois de ter os pontos e rotas confeccionados, eu plastificava cuidadosamente o mapa, afinal aquele pedaço de papel era a minha passagem de ida e volta para um mundo totalmente desconhecido. Finalmente vinha a execução, não tão prazerosa como a fase de planejamento! Era hora de arrumar a mochila, rezar para não ter errado algum cálculo e navegar com a bússula em campo. O mapa, simplesmente, era o registro da história da viagem. A linha por onde eu havia passado, os pontos onde dormi e me alimentei, os trechos mais cabulosos, tudo estava naquele pedaço de linhas e formas maravilhosas.     

Hoje é bem diferente. A parte artesanal foi trocada pela tecnologia. Para se planejar uma viagem, abre-se o Google Earth e a rota é desenhada num clicar de mouse. Simples assim! Essa rota é transferida para o GPS (nos aparelhos atuais, nem de cabo precisa), e a parte mais difícil fica por conta da persuasão do chefe com a liberação. A navegação é toda realizada por meio do GPS. Acabou-se o mapa de papel!
Ainda que a tecnologia nos auxilie muito, há também o lado negativo dessa evolução. No livro, Jennings relata um preocupante desinteresse pela Geografia por parte das crianças. O autor explica o fenômeno dizendo que as crianças vivem, cada vez mais, em um mundo “sem lugar” – sem qualquer exploração pessoal pela Geografia da vida real. Escolhemos estilos de vida isolados – isolados por carros, por TV, por Ipod, por internet ou telephone – isso nos distancia de nossos arredores.  Reconhecer o nosso meio ambiente não é uma atividade única; é toda uma rede de sentidos espaciais e habilidades, tão fundamentais que não podemos deixá-los serem trocados por máquinas, completa Jennings.         
   

Melhor que as fotos de minhas viagens, são meus mapas. Enxergo neles experiências de vida, histórias únicas, locais intocados, pessoas interessantes, outras nem tanto, chuvas torrenciais e dias perfeitos. Porém, por mais curioso que possa parecer, o que mais me fascina nisso tudo é a linha pontilhada deixada para traz. Significa minha passagem por esse mundo. O rastro virtual de minha experiência.      
  
  “An individual is not distinct from his place. He is his place.”

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Transmantiqueira - bike de Juiz de Fora a Atibaia




“...Certo ou errado até
A fé vai onde quer que eu vá
Oh! Oh!
A pé ou de avião...

Mesmo a quem não tem fé
A fé costuma acompanhar
Oh! Oh!
Pelo sim, pelo não...

Andá com fé eu vou
Que a fé não costuma faiá...”

Andar com fé
Gilberto Gil

Está lá no Wikipédia: “fé é a adesão de forma incondicional a uma hipótese que a pessoa passa a considerar como sendo uma verdade sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confiança que se deposita nesta ideia ou fonte de transmissão”.
Ao se conhecer os problemas e detalhes envolvidos em uma viagem de bike, torna-se difícil depositar na fé a responsabilidade do sucesso. Apesar de ter crescido em uma família extremamente católica, sempre fui adepto ao ceticismo.
A lógica sempre me convenceu, até o dia em que passei meu primeiro sufoco voando de asa delta. Engolido por uma nuvem a mais de dois mil metros de alturta, sem saber para onde era a terra e para onde era o céu, segurava firmemente a barra de controle da asa e rezava para sair daquela turbulência sem fim.
Foi assim que aprendi a ter fé. Em inúmeras ocasiões que o domínio da situação fugiu do meu controle, lá murmurava eu: “Deus me livre”, “Iemanjá que me ampare”, “Deus que óia!”. Apesar de não ser adepto de uma religião específica, sempre identifiquei na natureza uma energia diferente. Uma força pulsante sem explicação. E é aí que se encontra a minha fé.
Quando pensei em cruzar toda a extensão da Serra da Mantiqueira de bike, além de um detalhado planejamento, precisei de fé, diga-se: precisei aderir de forma incondicional à possibilidade de transpor toda aquela cadeia de montanhas pedalando com absoluta confiança na ideia.
 
1º dia 24/09
Juiz de Fora – Taboão
Dist: 107km
Asc: 2405m
E assim parti. Em Juiz de Fora, acompanhado pelo amigo Guilherme Gonçalves, iniciei a interminável série de sobe-e-desce morros. Zerei o odômetro às 11h00min do dia 24 de setembro deste ano. Havia estipulado uma rota de 540 quilômetros até a cidade de Atibaia. Da partida até a chegada, a ideia era percorrer uma média de noventa quilômetros por dia, parando para pernoitar nas aconchegantes cidadezinhas encrustadas nos vales da Mantiqueira. No primeiro dia, percorremos 107 quilômetros até a cidade de Taboão. 
Passando pela Serra do Funil, contemplando o belíssimo visual, com a lenta progressão morro acima, sentimos o que nos aguardava. A Mantiqueira nos dava as boas vindas! Fora o fato de termos saído tarde, o exigente percurso nos atrasou a chegada. Já sem a luz do dia, despencamos a última descida em direção a Taboão. Havíamos reservado um quarto na pousada da Dna. Joaninha. Na entrada da cidade, iluminada pela luz de um poste, uma mulher acenava para nós. Descartei a possibilidade de ser a Dna. Joaninha, mas, ao me aproximar, ouvi:
- Oi! Sou a Joaninha. Venham por aqui. A pousada é logo ali.
Faminto, sujo e cansado, agradeci a ela pela recepção e a indaguei onde poderíamos comer. Inacreditavelmente, ouvi de Dna. Joaninha que nosso jantar já estava preparado. Não podia ser! Tudo o que sonhávamos.
Tudo parecia perfeito até que Dna. Joaninha nos mostrou nosso quarto. Em minha imaginação, um lugar sujo, asqueroso, claustrofóbico e desconfortável é um cativeiro de sequestro, sendo que o quarto que Dna. Joaninha havia selecionado para nós era uma categoria abaixo. Com 4 m², sem banheiro, sem ventilação e todas as paredes mofadas (sou extremamente alérgico), não havia outra opção, senão ter fé que não seria tão ruim. Passei a noite em claro com uma toalha úmida no nariz a fim de minimizar a crise de espirros. Após uma breve cochilada, fui despertado por uma baratinha que dividia a cama comigo. O cansaço era tal que apenas pedi licença para a nojenta e dormi a meia hora que precedia o raiar do dia. Ao acordar, arrumei as tralhas na mochila e pedi a conta para Dna. Joaninha. Sorridente, ela disse:

- Fiz um preço especial para vocês. Paga R$150,00 cada um que tá bom!
- Tá bom pra quem Dna. Joaninha? Resmunguei.
Admitindo o malogro da situação, pagamos e seguimos viagem.     



2º dia 25/09
Taboão – Bocaina de Minas
Dist: 77,2km
Asc: 1963m
Com menos de um quilômetro, nos deparamos com uma subida longa e íngreme para saudar o dia! A cada curva da maldita subida, fazendo uma força do cão e rangendo os dentes, eu enxergava a imagem de Dna. Joaninha acenando!
Após 12 quilômetros, paramos em Itaboca a fim de conhecer a cachoeira do Boqueirão da Mira; um belo corte na pedra por onde passa o rio. Saindo de Itaboca, mais sobe e desce! Pegamos um pequeno trecho de asfalto entrando em direção a Passa Vinte, mas após cinco quilômetros retornamos para a terra “escalando” uma rampa interminável. Saímos de 800 metros e só paramos de subir na cota 1250, numa lapada só! Mantivemos nossa rota pedalando mais vinte quilômetros por esta cota. Os quinze últimos quilômetros do dia foram despencando até Bocaina de Minas.

3º dia 26/09
Bocaina de Minas – Passa Quatro
Dist: 91km
Asc: 1926m 
Às 10h50min do dia 26 de setembro, partimos em direção a Passa Quatro. Após Santo Antônio do Rio Grande, subimos pelo vale até a cota 1500. Fé nas pernocas! Mantiqueira pura. Visual de tirar o fôlego. Baixamos até 1300 metros, até a comunidade de Monte Belo, onde paramos para lanchar. Com a energia reposta, voltamos a queimar as pernas subindo novamente até os 1550 metros, de onde, enfim, despencamos até Itamonte. Nesta cidade, paramos para comer de novo. 
Em frente à padaria, deitado no chão com o bucho pra cima, eu tentava digerir os quatro pães e os dois copos de caldo de cana que acabava de devorar, quando um senhor magro de cabelos brancos discretamente me cutucou e perguntou:
- Ooopa! Cêis tão viajando né? Óia, do jeito que tem morro por aí, vô dá uma dica pro cêis fazê as currva mió!
Sentado em sua Caloi Berlineta ano 1972, Seu Lázaro explicava empolgadíssimo como não perder o controle em uma curva fechada!
- Vai virando o guidão devagarim, e aí cêis dá uma biliscadinha no frei traseiro e decha a rabeira deslizar um cadim. Só num pode perdê o controle, tem qui tê fé...
Atento aos ensinamentos de Seu Lázaro, eu percebia que a fé, mais uma vez, marcava a sua presença na viagem.
Para chegar a Passa Quatro, onde dormiríamos, passamos paralelamente à crista do trekking mais famoso do Brasil: a Serra Fina. Passa Quatro fica encrustada no vale do rio homônimo, e do alto tivemos a oportunidade de apreciar a bela, organizada e pacata cidade. Meu amigo Tatá, em outra oportunidade, havia se hospedado com o saudoso Dentinho e a querida Tati por lá, e com propriedade me sugeriu um belo lugar para esticar as costas. No Hostel Casarão, a Tia Doca nos recebeu como filhos. Comunicativa como todo bom mineiro, Tia Doca nos contou toda a história do velho casarão. Trabalhava há quarenta e cinco anos no local, desde quando o Casarão ainda era uma casa de família. Sugerido por Tia Doca, fomos experimentar uma cerveja artesanal da cidade, o que serviu para intensificar o sono que chegava. 

4º dia 27/09
Passa Quatro – Delfim Moreira
Dist: 52,9km
Asc: 1714m 
Aproveitando o aconchegante colchão, perdi a hora e, mais uma vez, atrasamos a partida. Para esquentar as pernas, já no começo do dia, pegamos uma subida de 13 quilômetros, ganhando 900 metros de altura só nesse trecho. Finalizamos o martírio a 1640 metros de altitude. Apesar do esforço hercúleo, o visual foi compensador. É inacreditável a vista da cordilheira da Mantiqueira. Foi possível avistar com clareza a Pedra da Mina e os picos do Itaguaré e dos Marins, famosos na cordilheira.
Descemos para Marmelópolis (1200 m), onde recuperamos um pouco de nossas energias com um “balde” de 700 ml de açaí cada um. Desta cidade até Delfim Moreira, nos restavam vinte quilômetros. Achando que seria tranquilo, equivoquei-me. Uma “parede”, logo na saída da cidade, nos levou a 1400 metros de altura.
E então, após um pequeno trecho plano, por um vale, voltamos a escalar. Uma longa subida de mais ou menos dez quilômetros serpentando as montanhas nos catapultou até os 1700 metros. Paguei um ano de pecados. Incrédulos com o tanto que havíamos subido, observamos o outro lado da montanha. Fatigados, mas felizes, descemos quinhentos metros por uma estradinha sinuosa entre pequenas fazendas no vale até chegar a Delfim Moreira.
Como havíamos chegado relativamente cedo, resolvemos fazer uma faxina nas bikes. Procurando por um local onde limpar as correntes, passamos em frente a uma oficina de carros (JC Centro Automotivo) e, explicando o que procurávamos, o proprietário, Juninho, mantendo a boa tradição de acolhimento mineiro, nos emprestou querosene e abriu suas instalações para que pudéssemos dar um banho nas magrelas. Ficaram como novas!
Na pousada, após um merecido banho, foi a vez de faxinar o armário. Afinal, era o quarto dia de viagem. Lavei as roupas e reorganizei os suprimentos que ainda tinha. Pronto! Tudo estava em dia e preparado para continuar. Que viesse a temida subida para Campos do Jordão!

5º dia 28/09
Delfim Moreira – Campos do Jordão
Dist: 63,8km
Asc: 1354m 
A saída que havia estipulado em minha rota contornava a bela igreja da cidade e subia em meio a um enorme vale em direção à divisa dos estados de Minas e São Paulo. Apesar de não ter religião, aproveitei a passagem pela igreja para recarregar minha fé. Afinal, a subida seria longa!
No percurso que fazíamos, a divisa de estados era marcada pela entrada no Horto Florestal da cidade de Campos do Jordão. Nesta região, as araucárias tomam conta da belíssima paisagem. Da divisa até a cidade, seriam 30 quilômetros de descida. Mas, como nada é de graça, logo na entrada do Horto, a chuva que era esperada para o dia despencou. Uma puta chuva de granizo a 1800 metros de altitude em um dos locais mais frios de São Paulo. Ave Maria! Foi foda! Fé inabalável...
Apesar do frio congelante, a cena era bonita; o chão coberto por bolinhas brancas, o barulho do granizo batendo no capacete e no anorak e a floresta de araucárias encoberta por neblina. Depois de dez minutos, havia um rio de lama na trilha. Por conta disso, a pastilha do freio traseiro foi-se embora. Tentava me manter em equilíbrio na interminável e gelada descida administrando a frenagem da bike com o freio dianteiro e um leve toque no traseiro, da mesma forma como havia me ensinado Seu Lázaro. Após uma hora de martírio, chegamos à casa do Ivan Pires, onde tomei um banho quente e colocamos as coisas em ordem antes de bater um bom e produtivo papo com meu amigo de corrida de montanhas.
 

6º dia 29/09
Campos do Jordão – São Francisco Xavier
Dist: 63,9km
Asc: 1019m 
Eu precisava descansar. O frio, a chuva, o acúmulo da viagem, tudo havia me deixado exausto. Por conta disso, dormi demais e saímos somente ao meio dia. Na casa do Ivan, havia me empanturrado de carne na noite anterior, e, creio que por isso mesmo, acordei me sentindo mal. Logo na primeira subida do dia, o enjoo e a fraqueza me derrubaram! Ainda assim, segui tocando, pois o cronograma era apertado. Descemos de Campos até Sapucaí Mirim por uma antiga estradinha de terra. Em Sapucaí Mirim, sentindo-me muito fraco, resolvi almoçar. A única opção era um self service “sujão” que havia na praça. Não era a coisa mais sensata a se fazer, mas fiz um pratão ali mesmo. Finalizando o almoço, deitei no banco da praça para fazer a digestão. Vinte minutos depois, acordei de um sonho meio louco e voltamos aos pedais. Na saída da cidade, percebi algumas nuvens negras se formando no alto dos morros por onde passaríamos. Em meio à subida, me dei conta de como continuava fraco. Creio que estava com uma virose. Pedalei devagar e suando frio, contando cada quilômetro. No final da subida, paramos em um boteco na estrada e tomei uma coca para ver se aliviava o enjoo. E então a chuva nos pegou. Com a água caindo, o frio somou-se ao enjoo e à fraqueza. Nada agradável. Uma hora depois, com muita fé, chegávamos a São Francisco Xavier, aonde cheguei ensopado e sem sentir os dedos dos pés.

7º dia 30/09
São Francisco Xavier - Atibaia
Dist: 99km
Asc: 2381m

Para o último dia de viagem, havia a previsão de chuva forte. O tempo amanheceu fechado e frio. Saímos às 11h00min sem saber o quanto pegaríamos de chuva. Não obstante as pernas doídas e cansadas devido ao acúmulo dos dias, eu me sentia melhor em relação à virose. Passamos por um trecho de floresta belíssimo entre São Francisco Xavier e Joanópolis. Com quarenta quilômetros, apesar da previsão e das nuvens negras em nossas cabeças, ainda não havíamos nos molhado. Estávamos fugindo da chuva; algumas gotas começavam a cair, colocávamos o anorak. Mais à frente e sem chuva, tirávamos o anorak. Ameaçava chover, anorak novamente.  O tira e põe capa de chuva seguiu o dia inteiro. Exercitando minha fé, criei um mantra pessoal a fim de trocar uma penitência por outra. “Frio sim, chuva não, frio sim, chuva não”, eu seguia mentalizando. E deu certo. Chegamos anoitecendo em Atibaia sem termos nos molhado.
Logo que entramos na casa de meu amigo Cristian Fuchs, a água despencou pra valer. Que alívio! Sentia dor em tudo que era canto, mas a viagem tinha acabado.
A Mantiqueira havia sido conquistada. Ou lembrando Sir Edmund Hillary:
“It is not the mountain we conquer, but ourselves”
Sentirei saudades das montanhas, das intermináveis subidas, das casinhas simples perdidas em meio aos vales, dos amigos que me acolheram em suas casas e, sobretudo, de pessoas como o Seu Lázaro, que conseguem nos cativar e alegrar em meio a encontros incertos e casuais. Por diversas vezes na viagem, em lugares completamente inusitados, deparei-me com inúmeras manifestações de fé; um pequeno oratório em meio a uma subida, uma charmosa igrejinha no topo da montanha ou um terço pendurado na cerca da estrada. A crença no impalpável segue por todo lugar. A fé vive, ou melhor, a fé faz viver. 
        
“...Certo ou errado até

A fé vai onde quer que eu vá...”